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sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Diário de Catarina - escritório - nova casa velha e "Seu" Ronaldo


Depois de muitos anos na casa adaptada que adorávamos, tivemos que nos mudar para outro lugar que não agradou a ninguém. Tudo o que tínhamos no outro endereço perdemos com a mudança, e quando digo tudo, é tudo mesmo...

No novo endereço perdemos a amplidão e as salas e passamos a contar com o seguinte: um pequeno pátio para estacionamento dos carros (pequeno mesmo); um salão grande no térreo, onde ficava a parte administrativa, dividida por divisórias; no andar superior outro grande salão onde ficava a área técnica e uma pequena sala (também dividida por divisórias) onde ficava o chefe, ou seja, estávamos todos juntos em uma pequena casa que tinha o pé direito1 baixo, que nos dava a impressão de estarmos em um porão. Para quem leu o livro “ O colecionador” de John Fowles fica a dica de imaginar onde ficou a estudante Miranda, quando foi seqüestrada por Freddie. Não, não estou exagerando, depois de anos em uma grande casa arejada, em um bairro nobre da cidade, a sensação de ir para um bairro sombrio, em uma casa de dimensões diminutas era exatamente essa.

Neste nosso novo local, fomos nos adaptando e também passando por novas situações, aqueles que quase não tínhamos contato passaram a conviver diretamente conosco durante o dia todo. Como estávamos em uma sala única, dividida por divisórias, ouvíamos tudo e todos, perdemos completamente a nossa privacidade, e passamos a conhecer a intimidade de todos: se brigou com o marido/mulher; se o filho estava doente; se devia no banco; se tinha dinheiro sobrando para aplicar; se trocou de carro ou apartamento; se era católico, evangélico ou espírita; e por aí vai. A intimidade era total, querendo ou não.

Passamos então a conhecer melhor e conviver com o "Seu" Ronaldo, que era o motorista e fazia todo o serviço de rua: lavar e abastecer os carros no posto; serviço de banco; orçamentos e compras.

Que figura peculiar era o Seu Ronaldo, tanto que merece destaque neste capítulo. Bem mais velho que a maioria,  Seu Ronaldo era separado e com filhos adultos, por isso morava só, sua vida era a repartição e nós éramos os seus amigos. Gostava de ajudar a todos e tinha um bom coração (até demais), e queria arrumar uma nova companheira, mas que fosse bem novinha, assim passamos a brincar muito com ele em função disso. Mas ele era muito voluntarioso e teimoso, o que as vezes irritava algumas pessoas. Tinha um senso de justiça exacerbado e todos os dias comprava seu jornal (aquele bem popular), e de posse das notícias do dia, se punha a discuti-las com qualquer um que se aproximasse. Ninguém lhe dava bola e ficava ele comentando indignado a página policial, com aqueles fatos escabrosos de mortes, assassinatos, assaltos, seqüestros e estupros. Até que passou pela agência um estagiário, que vou chamar de Thales, que adorou seu jeito, e diariamente comentava as notícias com ele. Vamos lembrar que estávamos naquele salão grande, todos juntos, escutando os comentários sobre aquelas notícias diariamente. Tales adorava e suscitava Seu Ronaldo a falar cada vez mais e de forma mais inflamada sobre todos aqueles crimes. Isso ocorria nas primeiras horas da manhã, enquanto Seu Ronaldo aguardava o serviço de rua, ou seja, logo cedo tínhamos um programa novo, um jornal ao vivo, em que Thales era o âncora e Seu Ronaldo o repórter policial, nos brindando todas as manhãs com as notícias mais escabrosas do dia anterior. Ele se inflamava a ponto de avermelhar o rosto enquanto Thales impassível, tal qual um âncora, fazia seu comentário e pedia a análise dos fatos a Seu Ronaldo, que dava sua opinião sempre polêmica, gerando reação na "platéia", atenta mesmo sem querer.

Muitas foram as vezes em que eu e Nelson Augusto nos aproximávamos, e tal qual espectadores interessados, assistíamos a este jornal ao vivo, sob a batuta do estagiário Thales, que ao final das notícias se despedia com um sonoro bom dia. Seu Ronaldo então se retirava e saia da repartição para mais um dia de trabalho na rua e nós ficávamos rindo da forma como ele interagia com a notícia, dizendo como o governo e a polícia deveriam agir, sempre de forma não muito ortodoxa.


Lembrando de fatos assim que percebo como fomos unidos naquela fase tão sombria, em que fomos colocados em uma casa tão inóspita, mas que conseguimos transformar em um lugar habitável e divertido. Quem fez parte daquela história certamente sepultou os maus momentos, e deixa aflorar somente aquilo que nos acrescentou positivamente; a união, o riso, a alegria, a tolerância, o bom viver.

Não faço mais parte daquela repartição, nem tampouco Seu Ronaldo, não sei como vive hoje aquele homem, espero que tenha conservado seu lado bom, e nos momentos difíceis saiba e se lembre o quanto foi importante naquele lugar, o quanto deve estar fazendo falta e o quanto sempre foi querido, a despeito de sua personalidade tão original.

1Pé-direito é uma expressão utilizada em arquitetura, engenharia e em construções em geral, que indica a distância do pavimento ao teto.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Mulheres de Hoje - Conto 4


Aliança


Nara caminhava calmamente pela rua quando parou diante daquela vitrine. Lá estava o objeto de seu desejo mais secreto exposto em destaque, a aliança de brilhantes da famosa joalheria.

Imediatamente as lembranças vieram-lhe a cabeça, e recordou de quando era adolescente e sonhava com aquela aliança. Achava que era só encontrar o príncipe, pois a aliança viria embutida no pacote. Seria o símbolo do amor correspondido dado por ele.

Mais adulta percebeu que não seria qualquer príncipe que lhe daria a tão sonhada aliança, e com os pés fincados na realidade abstraiu seu desejo material, atendo-se aos valores verdadeiramente importantes para eleger aquele que seria o seu companheiro, pois nesta altura não acreditava mais em príncipes.

Um pouco mais madura, com o olhar voltado para a família formada, reconheceu seu valor, se orgulhou de seus feitos, errou em outros tantos, e mais fortalecida reparou que as escolhas foram corretas, que a paz e felicidade foram conquistadas. Mas a aliança continuava na vitrine da famosa joalheria.

Com seu habitual conformismo, olhou para a vitrine e ponderou que a aliança não lhe fez falta, e que talvez até pudesse ter em suas mãos uma idêntica, mas teria de ter mudado algumas opções, não deveria ter cometido alguns erros, poderia ter exigido a prova adolescente do amor verdadeiro.

Mas o que teria mudado?

Continuou a ver as vitrines pois não conseguiu a resposta, e talvez nunca a tenha.

Tal qual a aliança que teima em  permanecer na vitrine...

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Pensar... é preciso


"Pensamentos são como gotas d'água. Se eu penso nas mesmas coisas o tempo todo, estou criando uma imensa massa de água. Se meus pensamentos são negativos, posso me afogar no mar da minha própria negatividade. Se são positivos, posso flutuar no oceano da vida."
Louise Hay

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Diário de Catarina - escritório - colegas III



Ao longo dos anos, os vários colegas que passaram pela repartição deixaram lembranças, até que eu mesma fui embora, deixando velhos e novos colegas naquele lugar onde vivi anos muito bons.

Lembro-me de que os fumantes fumegavam livremente em suas mesas, deixando incomodados muitos colegas, quando veio a proibição de se fumar dentro da repartição, obrigando então a criação de um lugar específico que chamávamos de “fumódromo”.

Nada mais era que um banco grande, no canto do quintal, onde se reuniam todos os fumantes e também vários não fumantes (inclusive eu!). Lá todos tomavam um café, conversavam, riam, riam mais um pouquinho e também fumavam. Alguns freqüentavam o espaço com mais assiduidade, já que a dependência do cigarro falava bem alto, outros até diminuíram o cigarro, e haviam aqueles que mesmo sem fumar compareciam para um papinho. O nosso fumódromo era um lugar muito divertido que logo passou a se chamar “fofocódromo”.

Recordo-me também que já não estávamos na casa adaptada e sim em um novo endereço que merecerá uma descrição mais detalhada brevemente.

O fumante mais inveterado da repartição era o colega que chamarei de Nelson Augusto, que subia e descia ao fumódromo várias vezes por dia, ou seja, quase sempre estava lá. Os colegas iam e vinham e Nelson Augusto continuava lá no banco com seu cigarro. Até que um dia Nelson Augusto desceu com seu cigarro e um jornal, que não conseguiu ler, pois sempre chegava alguém para interrompê-lo.

Nesta época havia um programa de humor na televisão chamado “A Praça é Nossa”, onde vários esquetes se passavam em um banco de praça, em que o dono do programa tentava ler um jornal e sempre era interrompido pelos personagens, que passavam por lá para importuná-lo. E assim nosso fumódromo evoluiu, tornando-se um programa de humor, já que toda vez que eu passava pelo local, lá estava Nelson Augusto fumando e ouvindo alguma história dos personagens que desfilavam durante todo o dia. As histórias que surgiam desses momentos eram deliciosas, e todos riam muito comparando o programa humorístico com nosso dia a dia. Devo dizer que não foram poucas as vezes que nosso “programa” era bem mais engraçado que o original, pois Nelson Augusto com seu humor mordaz fazia muito bem seu papel, fazendo graça de tudo e de todos, sempre com seu inseparável cigarro. 

O único que não apreciava nosso “programa” era o chefe de então, que desde o início da sua gestão quis imprimir um tom austero a repartição, o que não combinava de forma alguma com aquela população de pessoas que sempre foi, a despeito de qualquer coisa, de bem com a vida.

Depois de o nosso programa ter saído do ar, já que muitos personagens foram transferidos ou demitidos, incluindo o ator principal, Nelson Augusto, ele deve ter ficado satisfeito, mas nós levaremos sempre na lembrança os dias felizes e ensolarados que vivemos.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Diário de Catarina - escritório - Colegas II




Bom dia Catarina!

E mais um dia começava naqueles muitos dias de minha vida na repartição.

A vida ali era diferente, eu que havia trabalhado na sede da empresa com mais de dois mil funcionários, passei a trabalhar em uma repartição com pouco mais de cinqüenta pessoas, em uma casa adaptada.

Minha vida havia mudado muito, estava com minha filha de seis meses, transferida para mais perto de minha casa, era um período de adaptações em tudo, na vida e no trabalho.


Apesar de atender ao público externo, que não nos deixa seguir uma rotina pré-estabelecida de trabalho, os dias eram quase sempre iguais.

Chegava à minha sala, e se já não houvesse alguém do público externo para receber, me dirigia à sala anexa bater um papinho com as colegas, que serão chamadas de Sofia e Solange, e tomar um café (tínhamos uma cafeteira própria!). Lá tratávamos de tudo: capítulo da novela anterior (com direito a análises sócio-culturais), o cardápio do jantar (com direito a receita), reclamações do marido, filhos, família, chefe e etc. (com direito a conselhos), moda, viagens, notícias e fofocas da empresa. Um ambiente de muita descontração com muitas risadas, que nos fez dispensar muitas vezes, anos de terapia. Quando uma de nós não chegava bem por algum motivo particular, após discorrermos sobre todos esses assuntos já ficávamos refeitas para enfrentar o dia de trabalho.

Passamos a andar sempre juntas e ganhamos vários apelidos dos outros funcionários: Mimi, Cocó e Ranheta; as irmãs Cajazeiras, as meninas super-poderosas e por aí vai.

A hora do almoço deveria ser um capítulo a parte, trabalhávamos próximo de um centro comercial e fatalmente, após almoçarmos, dávamos uma voltinha para ver as vitrines. Sempre, eu disse sempre, uma de nós voltava com uma sacola: uma blusa, um baton, um sapato, outro sapato, uma sandália, roupa para o filho, um descascador de camarão, uma tigela, um enfeite e etc. Logo cedo já nos programávamos:  “Hoje tenho que ir lá no centro comercial na hora do almoço ver/comprar .........”. Acho que nunca compramos tantas roupas e sapatos como naquela época, sempre com o apoio das outras duas que, por não querer gastar sozinha, convencia a outra de como aquilo era imprescindível, como a roupa tinha caído bem, como o sapato era lindo e assim por diante.

Veja como mulher se protege para as compras, quando o horário extrapolava muito, uma voltava para repartição enquanto as outras continuavam na loja (uma comprando e a outra dando suporte).

Criamos vários bordões dignos de fazer parte de programas humorísticos, alguns copiamos da televisão, outros foram criados na nossa realidade,  vou contar cada um deles e suas explicações de acordo com as situações. Em relação aos atrasos falávamos o seguinte:

“Fica aí que eu volto e seguro tudo, tudo, tudo amigaaaa”  ou
“ Vai lá que eu  fico e seguro tudo, tudo, tudo amigaaaa”.

Assim mesmo, três vezes o “tudo” e o amiga com a sílaba tônica no “a” final.

No começo ríamos muito com nossos bordões, depois aquilo se incorporava de tal forma ao nosso vocabulário que falávamos naturalmente não nos causando mais impacto, porém, quando soltávamos algum deles para outras pessoas, estas nos olhavam espantadas, tentando entender o que queríamos falar, incluindo nossos maridos.

A vida no serviço público por vezes é muito difícil, temos que conviver com muitas injustiças e tudo é muito moroso para se resolver, mas sabíamos nos abstrair desse clima pesado e criar uma atmosfera descontraída e feliz, a despeito dos problemas que pudéssemos estar passando. Nossa convivência era praticamente restrita ao escritório, cada qual tinha uma vida completamente diferente uma da outra, somos três personalidades completamente diferentes, e talvez por isso nossa convivência tenha sido tão enriquecedora e tenha dado tão certo por um longo período, sem brigas, com muitas risadas e companheirismo.

Hoje cada uma de nós trabalha em uma repartição diferente, mas sempre nos lembraremos da nossa convivência como se fosse um casamento muito feliz, mas que acabou porque a vida de cada uma foi mudando, novos personagens se incluíram nessa convivência. O golpe final e certeiro que selou nosso divórcio foi a transferência de cada uma para outros escritórios, encerrando um ciclo que nos trouxe muita alegria e evolução pessoal e que ficará na saudade.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Cecília Meireles





Renova-te.

Renasce em ti mesmo.
Multiplica os teus olhos, para verem mais.
Multiplica os teus braços para semeares tudo.
Destrói os olhos que tiverem visto.
Cria outros, para as visões novas.
Destrói os braços que tiverem semeado,
Para se esquecerem de colher.
Sê sempre o mesmo.
Sempre outro. Mas sempre alto.
Sempre longe.
E dentro de tudo.

Cecília Meireles

Diário de Catarina - Escritório - Colegas

COLEGAS



Muitas são as histórias a contar dos muitos colegas que passaram pela repartição. Algumas engraçadas, outras dramáticas, algumas emocionantes e poucas tristes a ponto de não nos permitir alguma graça, felizmente.

Como se tratam de histórias verídicas e recentes, sinto-me acanhada de relatar muitas delas, facilmente reconhecíveis pelos protagonistas, mas, como não expor  algumas pérolas de nossa convivência? E devo me reportar logo no início de minha estada.

É fato que quando da minha chegada, a seção já era antiga, com funcionários de anos trabalhando lá, por isso o meu desconforto inicial, que foi logo superado, já que não me falta audácia para piadinhas com desconhecidos.

Trabalhava em uma sala sozinha, já que atendia ao público externo (alvo de um próximo capitulo), mas muito falante que sou quase nunca parava em minha sala, pois adoro bater um papinho, e na sala anexa trabalhavam duas colegas, tão falantes quanto eu. Nessa ocasião ficava nesta sala um senhor, responsável pelo trabalho com o único computador da seção, pois não haviam computadores pessoais para todos os funcionários como hoje.

Vamos chamá-lo de Nestor, um senhor muito quieto, completamente diferente de nós, três malucas falantes, que passávamos o dia falando bobagens e rindo. Não podemos esquecer que isso ocorreu na época daquele chefe que pouco produzia, já comentado.

Nestor vivia calado no computador, ouvia, ouvia e ouvia, por vezes ria, ficava com o rosto vermelho e dava sua opinião. Quando alguma de nós, sempre muito “antenada” com as fofocas do momento, fazia algum comentário acerca de qualquer assunto, ele dava seu palpite, sempre contrário ou desacreditando das nossas conclusões, com seu ar meio rabugento.

Aquela sala era o centro das conversas, próxima do quintal (sim, era uma casa!), longe do chefe, e com nosso parceiro Nestor e seu computador.  Muitas vezes falávamos alguma coisa de propósito, sabíamos que ele não ia concordar e esperávamos sua reação pouco amistosa.


Até que uma vez, numa costumeira discussão com minha amiga, ele perdeu a calma, e depois de muita argumentação de ambas as partes ele levantou, e com o rosto muito vermelho bradou aos gritos: Por que? Por que? Por que?  Com os braços erguidos e gesticulando muito.


Ela parou, olhou para cada uma de nós assustada pela reação, e imediatamente para quebrar o gelo e acalma-lo levantou e gritou respondendo: Porque sim! Porque sim! Porque sim! Imitando-lhe os gestos.

E tudo acabou em gargalhada. Nem preciso dizer que até hoje quando uma de nós não entende alguma coisa, seja lá o que for, para e grita: Por quê? Por quê? Por quê? E caímos na risada, e quem está perto pensa que somos loucas, e somos mesmo...

A estadia dele nesta sala não durou muito tempo, logo foram chegando os computadores e o layout da seção foi modificado, e o nosso querido Nestor mudou de sala. Por muito tempo encontrávamos com ele e falávamos: Saudade Nestor, volta pra sala!

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Maquiavel, sempre atual...

"A natureza criou o homem de tal modo que ele pode desejar tudo sem poder obter tudo". Maquiavel





Procurei me abster de textos que pudessem invocar a pensamentos políticos, porém o atual momento me fez lembrar de minhas aulas de filosofia com minha professora Sônia nos idos de 1980.

Estudante de colégio feminino, de freiras, achava que nos era ensinada a Filosofia de forma a atender sempre aos ditames religiosos das quais éramos criadas, ou seja, o pensamento não era livre como deveria.

Lembro-me de que quando estudei a obra de Maquiavel, em especial “O Príncipe”,  esta foi  duramente criticada pela professora, já que a máxima “O fim justifica os meios” ia contra a temática religiosa que nos era ensinada.

Simpatizei então com Maquiavel e seu raciocínio lógico, e apesar de achar realmente que não é por qualquer meio que possa alcançar os fins, por vezes julguei isso justo na obtenção de alguns propósitos para que se concluíssem determinadas ações.

Pensamento torpe, arraigado na população de modo geral, que vê seus políticos como príncipes que tirarão seus problemas maquiavelicamente, ou seja, sem se importar com a ética e a honestidade.

Passamos por um momento que precisa nos remeter à reflexão. Reflexão daquilo que queremos de forma mais complexa, não somente a índices e estatísticas satisfatórias, esta ou aquela ação e sim atitudes que denotem franqueza e humildade. O retorno do ser humano aquilo que é o seu propósito, o da solidariedade.

Em “O Príncipe”, hoje tão atual, temos uma ideologia política que se apresenta como criação de uma fantasia concreta, que atua sobre um povo disperso e aniquilado para despertar e organizar a sua vontade coletiva. Em todo o livro, Maquiavel mostra como deve ser o Príncipe para levar um povo à fundação do novo Estado, e o desenvolvimento é conduzido com rigor lógico. Na conclusão, o próprio Maquiavel faz-se povo, confunde-se com o povo, mas não com o povo real, mas  o povo que Maquiavel convenceu ser o existente e sente-se identificado, ou seja, parece que tudo é uma reflexão do povo, um raciocínio interior que se manifesta na consciência popular e acaba num grito apaixonado, imediato. A paixão, de raciocínio sobre si mesma, transformando-se em entusiasmo momentâneo, fanatismo.

Enfim, muitos dos políticos de hoje, mesmo aqueles não tão letrados, baseiam-se nesta obra de Maquiavel, e buscam para si o modelo do Príncipe, a fim de transformar o povo para a forma que melhor lhe convier.

Disse Ghandhi: “Temos que ser a mudança que queremos ver”, e assim chego à conclusão que minha professora Sônia não foi tão tendenciosa às vontades do colégio religioso, nem tampouco o pensamento livre nos era tolhido. A vontade era de nos ver pensando de forma livre e com ética, e uma opinião deve levar a discussão, o que não era usual naquela época pós-ditadura, por isso o estranhamento e a sensação errônea de estarmos sendo direcionados. 

Mas não serei só críticas a Maquiavel, e devo dizer que considero alguns de seus pensamentos bastante factíveis, resultante de um raciocínio lógico o qual sempre procuro me balizar, pois tudo tem seus dois lados. Encerro com mais esse pensamento que devemos buscar aprender com Maquiavel e suas obras:

"Se ensinei aos príncipes de que modo se estabelece a tirania, ao mesmo tempo mostrarei ao povo os meios para dela se defender".

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Diário de Catarina - Escritório - O chefe


O Chefe



Meu nome é Catarina e trabalho em uma empresa do governo. Sim, sou funcionária pública há vinte anos, e posso contar episódios interessantes desse tempo todo de convívio nas esferas das empresas governamentais.

Sei bem o que esse título desperta nas pessoas. Todos acham que não trabalho muito e a maioria me inveja pela minha estabilidade, porém, outros me desprezam por esse mesmo motivo. A vida de um funcionário público é puro paradoxo, alguns que trabalham demais para fazer a máquina funcionar e também para permitir que outros não façam nada.

Certa vez mudei de unidade, e no meu primeiro dia aguardava na recepção meu novo chefe. Cada um que chegava me cumprimentava timidamente com cara de poucos amigos, desconfiados por saber quem era essa funcionária que conseguiu se transferir. Provavelmente protegida de algum político.

Percebi primeiramente que os horários não eram respeitados, diferentemente da outra unidade em que eu trabalhava em que o chefe chegava cedo e controlava o horário de todos. Fui recebida por ele já meio da manhã, e muito contrariado me colocou em uma sala junto com outra funcionária que me ensinaria o novo serviço. Muito tempo depois vim a descobrir que já era detestada por ela porque o tal chefe me passou o serviço que era dela sem ao menos avisá-la.

Esse meu novo chefe era digno de um capítulo só dele. Cumprimentava todas as manhãs, sala por sala, todos os funcionários, e aqueles que ele gostava (não era o meu caso) eram agraciados com uma análise de seu mapa astral. Essas análises duravam praticamente toda a manhã. Se você precisasse falar com ele algum assunto, tinha que se preparar para ouvir suas intermináveis histórias de algum fato que ele viveu, e provavelmente voltar para sala com o problema sem solução, já que essas estórias nunca se referiam ao problema por nós apresentado. Chegamos a conclusão depois que na verdade ele não sabia resolver nada.

Quando chamados por ele por algum motivo de trabalho, nunca se saía da sua sala em menos de uma hora e se o chamado fosse próximo do final do expediente nos despedíamos antecipadamente dizendo "até amanhã" às gargalhadas.

Mais um paradoxo do serviço público, ao mesmo tempo em que você se irrita diariamente pela falta de soluções rápidas para os problemas existentes, o ambiente normalmente é bem descontraído, e a aura de injustiça reinante nos une e praticamente nos transforma em humoristas, gozando uns aos outros e a nós mesmos.

Assim passavam-se as semanas; atrasos, mapa astral, conversas longas e o serviço parado na mesa dele como água de chuva parada na barragem de rio, prestes a se romper. Passamos a trabalhar em um ritmo mais lento, a secretária se desesperava, nós cada vez mais ociosos e tudo se avolumava na mesa dele, que não se abatia. Achava que tudo merecia uma análise minuciosa e agora, analisando bem, acredito que ele esperava alguma mensagem do astral para solucionar as questões, mesmo as mais banais.

Considero uma sorte ele não gostar de mim, por que assim era ignorada, que nesse caso era ótimo. Mas sei de histórias de alguns infelizes que passavam horas escutando as estórias contadas por ele, com o serviço por fazer em suas mesas.

Ele costumava trabalhar nos fins de semana, já que não dava conta de resolver as coisas de segunda a sexta com a casa cheia. Nestas ocasiões foi flagrado diversas vezes por alguns funcionários trajando somente uma sunga, pois estava na praia e após, passava no escritório para trabalhar. Também usava um incensor para afastar as energias negativas e atrair bons fluidos para o trabalho, e nos enchia de mensagens de otimismo e votos de prosperidade. Trabalhar que é bom...

Essa aura mística que ele tentava aplicar no escritório era cômica, nem os programas de humor da época tinham personagem mais caricato. Em uma ocasião ficou trancado com a secretária na sala passando-lhe energias positivas porque achou que ela estava muito carregada, passávamos pela janela e a víamos praticamente debruçada na mesa, certamente farta daquela situação.

Certa vez, tinha uma reunião com importante empresário da região e por isso veio de paletó e gravata, porém com a calça de um agasalho esportivo. Justificou dizendo que ia ficar sentado e a calça não seria vista.

Risos e mais risos e novo paradoxo, foi a época que o escritório menos funcionou, choviam reclamações de todos os lugares, inúmeras cobranças, trabalho acumulado, mas todos os dias tínhamos motivos para rir a valer, e como rimos nessa época.

Não preciso dizer que ele se transformou em uma unanimidade por todos. Mesmo aqueles que se beneficiaram com promoções na sua gestão, não aguentavam mais aquela inépcia que prejudicava todo o escritório e suscitava cobranças de todos os lados.

Durou pouco. Em menos de um ano tiraram-lhe o cargo por conta das inúmeras reclamações, o que lhe causou uma enorme comoção, logo se aposentou com direito a lágrimas e discurso de despedida. Nem preciso dizer que a maioria fingia emoção, gargalhando por dentro durante o discurso, e houve até quem passou mal por conta das risadas, levando nosso chefe a achar que era tristeza pela sua queda.

Continuou nos assombrando por um bom tempo, fazendo-nos visitas e presenteando alguns que desafortunadamente tinham sua simpatia.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Comer, Rezar, Amar

Ainda não li este livro, mas vou recomendar porque assiti ao filme, e partindo da premissa que os livros são sempre melhores e gostei do filme...

A história é muito legal,  as  biografias sempre me interessam e esta não poderia ser mais leve.  As crises vividas pela protagonista são puramente existenciais já que não há impedimento financeiro que a impeça  de buscar pelo mundo suas respostas, coisa absolutamente impeditiva para a maioria de nós brasileiros.  Li muitas criticas negativas, outras positivas, mas que o filme é  legal e bem feito é!(só achei a fotografia um pouco escura. Alguém concorda?). O que as criticas todas concordam é que quando se tem dinheiro para viajar um ano para se descobrir, é difícil não ser feliz.(invejinha...)

A Itália... As paisagens... As experiências são muito boas e se transformam em um ótimo entretenimento, sorte dela que pôde fazer tudo isso e transformou essa experiência em um livro que pode ter ajudado muita gente.

Segue resenha do livro que pretendo ler. Leiam, assistam o filme e opinem!




"Elizabeth Gilbert estava com quase trinta anos e tinha tudo o que qualquer mulher poderia querer: um marido apaixonado, uma casa espaçosa que acabara de comprar, o projeto de ter filhos e uma carreira de sucesso. Mas em vez de sentir-se feliz e realizada, sentia-se confusa, triste e em pânico.
Enfrentou um divórcio, uma depressão debilitante e outro amor fracassado. Até que decidiu tomar uma decisão radical: livrou-se de todos os bens materiais, demitiu-se do emprego, e partiu para uma viagem de um ano pelo mundo – sozinha.  O objetivo de Gilbert era visitar três lugares onde pudesse examinar aspectos de sua própria natureza, tendo como cenário uma cultura que, tradicionalmente, fosse especialista em cada um deles. "Assim, quis explorar a arte do prazer na Itália, a arte da devoção na Índia, e, na Indonésia, a arte de equilibrar as duas coisas", explica."

sábado, 9 de outubro de 2010

A arte de correr na chuva

Quem me conhece sabe que adoro cães e sofri uma perda recente de meu cãozinho Raj, um fofo pug, aos dez meses. Passada a dor latente, hoje temos um lindo shihtzu, o queridinho Zorro, de sete meses. Resolvi estudar muito sobre cães desde a enfermidade do Raj, aprendi muito sobre doenças caninas e também o porquê de suas vidinhas serem tão curtas. Sua fidelidade, lealdade e amor comove até os mais endurecidos e li toda sorte de livros sobre a matéria como: "Marley e eu" (chorei muito), "Todos os cães merecem o céu" (temática espírita), e por último este que estou recomendando abaixo, porque é antes de tudo uma lição de vida para quem gosta ou não de cães.

Abaixo a resenha deste livro muito fofo:

A arte de correr na chuva
Garth Stein

Enzo é um terrier que vive em Seattle com o dono, Denny Swift, um piloto de corridas. Amigos inseparáveis, Enzo acompanha toda a trajetória de vida de Denny, desde sua luta para se tornar um piloto profissional bem-sucedido até seu encontro com Eve, o enlace de ambos e o nascimento da filha do casal.

Frustrado por não poder falar, uma vez que não é humano, Enzo costuma acompanhar todas as corridas de Fórmula 1 pela tevê, bem como tudo o que se passa a sua volta, até o dia em que uma fatalidade muda definitivamente a vida de todos.

Enzo é um cão com alma humana, que aprendeu tudo o que sabe assistindo aos programas de televisão e prestando atenção às palavras e ações de seu dono. É crítico, tem a postura típica de quem sabe o que quer e enxerga os problemas com muita clareza. E, além disso, tem uma missão essencial: ajudar Denny a superar as tragédias que assolaram sua vida.

Como todo fiel escudeiro, Enzo é obstinado, mas não insensível ao mundo que o rodeia. Sofre com a dor dos humanos com os quais convive, e com a sua própria, decorrente de problemas de saúde que foram comprometendo sua integridade física. Apesar de tudo, guarda no íntimo um grande desejo: nascer humano em uma próxima encarnação.

Se você sempre quis saber o que se passa na cabeça de seu cão, este romance comovente e inesquecível de Garth Stein oferece a resposta.

“Este livro aborda a importância das experiências provenientes do nosso aprendizado diário. A importância de se doar, de acreditar em um ideal.
Que cada leitor se identifique com algum ponto desta história e que não perca nunca a vontade de aprender e voar cada vez mais alto.”

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Literatura


Impressiona hoje em dia a rapidez das informações e portanto, como tudo é efêmero.
Tento imaginar se os autores atuais serão lembrados daqui a cinquenta anos e se será dado o devido valor a suas obras. 

Os grande clássicos da literatura são estudados nas escolas de forma muito diferente e superficial (é certo dizer que se assim não fosse nem estudados seriam!) porém, é tão fácil ter informação sobre qualquer coisa, que só não se aprofunda quem não quer.

E esse é o problema. Quem quer se aprofundar em algo?

Saber a que escola literária pertence este ou aquele autor, e o que significa cada uma delas só interessa aos vestibulandos. Tudo é muito antigo para os jovens, tão acostumados as modernidades dos smarts, Iphones, net e notes, PC's e tantas outras coisas, que ler Machado de Assis, ou ir a uma biblioteca pode ser comparado a leitura de papiros.

Não, não sou antiquada não! Adoro toda esta modernidade e não vivo sem meu netbook. A velocidade das informações nos atropela, e a vida vai passando, passando e se passa muito tempo sem ler "papel".

E acho que faz muita falta, porque aprofunda o conhecimento, instiga a mente, aumenta a criatividade.

Os livros continuam sendo editados (graças a Deus!), as livrarias hão de continuar existindo, mas, quem são os leitores? Não podemos deixar isso morrer.

Defendo os eletrônicos e adoro, mas, não desisto do papel !

FERNANDO PESSOA

Fernando Pessoa, nascido em Lisboa no dia 13 de junho de 1888, foi aclamado não apenas como o maior poeta português do século XX, como também figura entre os melhores do mundo.

Tinha tanto o que falar que usou heterônimos para suas obras. Os três  mais conhecidos (e também aqueles com maior obra poética) foram Àlvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro. Um quarto heterónimo de grande importância na obra de Pessoa é Bernardo Soares, além de Fernando Pessoa ele mesmo.

Esse é o meu poema preferido! Álvaro de Campos
    TABACARIA
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.


Álvaro de Campos, 15-1-1928

Clarisse Lispector

ADORO CLARISSE!!!


Sonhe com aquilo que você quiser.
Seja o que você quer ser,
porque você possui apenas uma vida
e nela só se tem uma chance
de fazer aquilo que se quer.

Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.
Dificuldades para fazê-la forte.
Tristeza para fazê-la humana.
E esperança suficiente para fazê-la feliz.

As pessoas mais felizes
não têm as melhores coisas.
Elas sabem fazer o melhor
das oportunidades que aparecem
em seus caminhos.

A felicidade aparece para aqueles que choram.
Para aqueles que se machucam.
Para aqueles que buscam e tentam sempre.
E para aqueles que reconhecem
a importância das pessoas que passam por suas vidas.

O futuro mais brilhante
é baseado num passado intensamente vivido.
Você só terá sucesso na vida
quando perdoar os erros
e as decepções do passado.

A vida é curta, mas as emoções que podemos deixar
duram uma eternidade.
A vida não é de se brincar
porque um belo dia se morre.

Mulheres de Hoje - Conto 3


Independência ou sorte.

Em uma dessas noites em que se tenta dormir mais não se consegue, relembro todas as vezes que tentei emplacar um novo relacionamento e não consegui. Graças a uma enorme incapacidade de integrar uma pessoa dentro da minha intimidade, continuava ano após ano na solidão noturna, sem ter com quem dividir minhas angustias.

Fui criada com um senso de independência tão grande que me era impossível dividir a vida com alguém. Desta última vez, encerrei um relacionamento de quatro anos quando me vi pressionada a assumir de maneira plena nosso romance. Não que eu não me envolvesse, mas era muito difícil aceitar alguém para quem eu tivesse que dar satisfação de onde vou, como gastar, o que usar, e outras tantas coisas que me remetiam a submissão que eu vi por tantos anos, com tantas mulheres na minha família, inclusive minha mãe.

Nesses últimos quatro anos, nosso relacionamento era muito bom; divertido, maduro, correto, leal... Mas eu não conseguia entregar por completo. Por mais que estivesse apaixonada, e por que não dizer amando, sempre decidia minhas coisas sozinhas, sem consultar ninguém, nem ele, motivo de desentendimentos diversos durante todo esse tempo. No final, voltei a ser sozinha de verdade. Era a quarta vez que isso acontecia e já imaginava estar fadada a viver só.

Na minha cama, na madrugada, choro tentando entender o porquê.

Já fazia uma semana desde o término, e embora aliviada com o fim das inúmeras satisfações, sofria com a falta que ele me fazia, pura e simplesmente. Novamente minha rotina solitária se instalava, e meu celular não tocava mais como de costume nos horários marcados, para um simples oi, um carinho ou algum recado.

Viver nesse conflito não fazia mais sentido. O tempo vivido e as experiências me impelem a decidir de que lado quero estar.

Hoje, aos trinta e cinco anos, tenho várias amigas, algumas já casadas e felizes, com filhos ou querendo ter, e outras solteiras e tranquilas, vivendo em paz com a condição escolhida. Somente eu, vivendo esse dilema entre a independência e o companheirismo. E a vida me dando mais uma chance com uma pessoa bacana, e eu sentindo que desta vez uma falta enorme de tudo.

Já havia amado outras vezes, mas nunca a sensação de estar perdendo algo precioso havia ficado tão latente. Onde quero chegar? A idéia de dividir minha vida me causava o medo de me perder de mim e, ao mesmo tempo, o tempo passando e eu sempre só.

Busquei na memória várias conversas que tive com várias mulheres, e o conflito persistia porque não conseguia entender uma questão matemática. Enquanto eu relutava em dividir a vida, todas tentaram me explicar que se tratava de optar em somar.

Três horas e quinze minutos de uma noite que não acaba, está na hora de acender uma luz na escuridão. Rompendo uma enorme barreira, antes instransponível, pego no telefone e ligo. Uma voz sonolenta e assustada me atende, e me surpreendo falando:

- Oi! Sou eu. Preciso de você na minha vida. Não desista de mim.

Antes mesmo da resposta já estou em paz! O medo só pode ser superado por nós mesmos. Temos que ser a mudança que queremos ver. A resposta veio firme, com uma pergunta:
- Você tem certeza?

- Sim. Quero você aqui comigo.

Somar, dividir, subtrair e multiplicar, desta vez vou aprender as quatro operações definitivamente.

Mulheres de hoje - Conto 2



A arte de fazer planos.

Acordei naquele dia com o barulho da chuva na minha janela, meu humor já começava nublado e instável, já que o outono se fazia presente e as manhãs ensolaradas e encaloradas, que eu tanto gosto, só voltariam na primavera.

Meu marido já havia saído para o trabalho, e eu, agora aposentada, desfrutava do ócio tão almejado, mas que estava começando a incomodar. Havia decidido que voltaria a me ocupar com alguma coisa, afinal, trabalhando desde muito nova, não estava conseguindo me acostumar com esse estado de férias permanente, e o mau humor dos tempos de trabalho voltava cada dia um pouco mais.

Meu filho estava na escola e, adolescente de dezessete anos, estava ocupado com sua vida, trilhando seu destino profissional. Minha missão agora era acompanhar a distância, orientando de longe e deixando suas descobertas acontecerem por ele próprio.

...Nem ao menos caminhar na praia estou podendo ir, pensei ainda mais irritada.

Quando trabalhava comandava a casa de longe com muita disciplina, e tudo corria muito bem; supermercado pela internet, orientações à empregada pelo telefone, tudo muito organizado, casa sempre arrumada e abastecida. O filho já andava com as próprias pernas e com uma rotina tão corrida, que eu nem conseguia acompanhar. Portanto, oito meses após a aposentadoria, com cinqüenta e dois anos, cheguei ao ponto de não ter o que fazer.

Que ironia! Busquei isso nos últimos dez anos com voracidade e agora, como várias pessoas me avisaram, já estou cansada. Estou aqui, tomando meu café da manhã calmamente, pensando o que fazer deste dia de hoje, com saudade dos telefones tocando, das pessoas ao meu redor falando, da falta de tempo para mim. Eis a chave do problema. Quando não se tem tempo não se pensa, e a vida vai passando rapidamente sem questionamentos e atitudes. Agora tenho tempo de pensar, não há como fugir, a pergunta martelando na minha cabeça: O que você vai fazer com sua vida?

Não posso reclamar do meu marido, é um companheiro há vinte e dois anos que me apóia em todos os momentos da minha vida. Alcançou seu sucesso profissional e nem pensa em parar aquilo que foi tão custoso e trabalhoso de conseguir, sua carreira. Para mim as coisas foram mais amenas, sempre pude estudar e só não consegui maiores conquistas por opção própria de priorizar a vida familiar à carreira. Portanto era claro que assim que pudesse, pararia de fazer o que sempre foi tão penoso, deixar minha casa e o filho distantes para trabalhar.

Qualquer rotina é desgastante, e assim, já cansada dessa minha nova rotina decidi então dar rumo a um novo sonho: voltar a estudar!

A carreira já estava escolhida há muito tempo, escondida pela falta de tempo e oportunidade. Voltar a estudar, conhecer gente nova e jovem, aulas, provas, trabalhos, professores. Um novo entusiasmo me invadiu.

Depois de comunicar o fato a família, que sempre me apóia nas minhas decisões, iniciei um novo curso de graduação.

A felicidade, a paz e a sensação de plenitude que já conquistei é muito grande. Todos os dias ao acordar, agora mais disposta mesmo nos dias de chuva, traduz a alegria de viver e me sentir útil, sempre buscando novos sonhos e conquistas.

Antes que a rotina me invada novamente, já tenho uma nova meta. Sim, agora já com tarimba na arte de fazer planos, desejo me tornar professora antes de completar sessenta anos, e antes que seja tarde, compartilhar as experiências desta minha vida para quem estiver disposto a me ouvir.

Mulheres de Hoje - Conto 1


Renascer
Estava sendo muito difícil sobreviver nos últimos tempos. Não sabia se as insatisfações recentes, que substituíram as antigas incertezas, eram responsáveis por tanta infelicidade. Mesmo assim consegui iniciar uma reforma íntima que me possibilitou uma grande mudança.

Acordei naquele dia, como em tantos outros, com vontade de continuar dormindo e não ir trabalhar, mas também o que fazer se não fosse para o escritório passar o tempo? Levantei-me e após um banho rápido fui para cozinha e tomei um iogurte como de praxe, me troquei rapidamente e saí, deixando toda a arrumação da casa para minha mãe. Ao menos uma vantagem de morar com a mãe nessa altura da minha vida, os trabalhos domésticos, que sempre detestei, não faziam parte da minha rotina.

Quarenta e nove anos, solteira, arquiteta, e paramos por aí, não avancei em mais nada. Sem casamentos, sem filhos, sem viagens maravilhosas, sem vida...

Chegando ao escritório reiniciei a análise de um projeto de reforma de uma casa cujo dono era amigo do meu chefe, ou seja, mais cuidado ainda. Ganhava bem, algumas comissões que engordavam minha poupança, mas não conseguia fazer aquilo que almejava na faculdade.

Minha vida financeira era estável, bom salário, nenhum gasto que fizesse mexer no dinheiro do banco. Morando com minha mãe no apartamento dela, os gastos eram somente os frugais, as roupas eram comuns, sem muitos adereços, não tinha o hábito de sair, salvo um cinema com minha prima ou minha mãe, e uma pizza um fim de semana ou outro. Fazia questão de não engordar porque minha mãe era bem gordinha e via o drama que isso gerou sua vida inteira.

Tinha poucos amigos no trabalho, todos pareciam confortáveis em suas vidas em família, e eu só, morando com minha mãe. Sentindo-me deslocada nesse meio, tinha amizade somente com uma colega que, divorciada, morava com a filha e se preocupava tão somente em arrumar outro companheiro. Nossa amizade resumia-se em uma tentar convencer a outra que estava certa. Ela tentava me convencer a aproveitar a vida, gastar meu dinheiro, viajar e conhecer pessoas, e eu por minha vez, tentava convence-la a ficar mais em casa e guardar mais dinheiro, pois tinha uma filha ainda pequena, que precisava da mãe.

Conversava-mos no café sobre a saída que ela teve na noite anterior. Mais uma balada em que conheceu mais um homem, mais uma noite cheia de aventuras. E eu, fiquei assistindo mais um filme repetido na televisão. Iniciamos uma leve discussão, de minha parte eu falava sobre a loucura de sair cada dia com uma pessoa diferente, enquanto ela perguntava se eu ia passar o resto da vida guardando dinheiro e assistindo filmes velhos na televisão, me disse que eu era motivo de risos no escritório com essa minha vida inerte.

No fundo senti uma enorme inveja daquela vida cheia de acontecimentos. Ela tinha uma vida difícil, criava a filha sozinha desde que o marido a deixou, o salário não era tão bom quanto o meu, com inúmeros problemas que movimentavam sua vida, causando inclusive alguns problemas de saúde, e eu morrendo de inveja, com essa minha vida tão “boa”, “estável”, “comportada”.

Conclui, só nessa hora, que algo estava errado. Era preciso fazer alguma coisa para deixar de ser a chata do escritório, motivo de risos em todos os escalões. Quanta vergonha e tristeza senti, que vontade de sumir de mim mesma. Comecei a lembrar das noites iguais, anos e anos vendo TV, contando calorias, dormindo, jogando baralho com minha mãe, escutando as lamúrias de minha prima sobre seu casamento e sua vida vazia. Sempre espectadora, assistindo minha vida passar sem sentir.

Pedi licença ao chefe, que espantado me deu o dia para resolver meu suposto problema particular. No banheiro antes de ir, pensei: Por onde começar essa mudança?

Não tinha nenhuma amiga para confiar, não queria falar com nenhum conhecido, na verdade não queria falar com ninguém. Esses anos todos me transformaram em um estereótipo de mulher bem sucedida, mas esse sucesso não estava dentro de mim.

Na verdade não queria uma transformação muito extrema, afinal minha auto estima estava abalada, mas já havia existido, e esse bem querer de mim mesma fazia com que eu almejasse somente agitar minha vida de forma a torná-la mais produtiva.

Busquei aquela jovem destemida e independente, vaidosa, e principalmente vibrante. Passo a passo reformei meu íntimo de modo que às transformações passassem despercebidas de início e, quando notadas não causassem nada além de uma grata surpresa a todos os conhecidos, colegas, amigos e familiares.

Mais bonita e cuidada, passei a desfrutar de alguns prazeres antes deixados de lado, e até mesmo saí algumas vezes com aquela colega.
Não foi tão simples. Essa mudança, que foi fruto de um mergulho dentro de mim mesma, causou cicatrizes profundas dentro de mim, mas que me fazem lembrar sempre de não me deixar incorrer novamente nessa armadilha da acomodação.