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sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Mulheres de Hoje - Conto 1


Renascer
Estava sendo muito difícil sobreviver nos últimos tempos. Não sabia se as insatisfações recentes, que substituíram as antigas incertezas, eram responsáveis por tanta infelicidade. Mesmo assim consegui iniciar uma reforma íntima que me possibilitou uma grande mudança.

Acordei naquele dia, como em tantos outros, com vontade de continuar dormindo e não ir trabalhar, mas também o que fazer se não fosse para o escritório passar o tempo? Levantei-me e após um banho rápido fui para cozinha e tomei um iogurte como de praxe, me troquei rapidamente e saí, deixando toda a arrumação da casa para minha mãe. Ao menos uma vantagem de morar com a mãe nessa altura da minha vida, os trabalhos domésticos, que sempre detestei, não faziam parte da minha rotina.

Quarenta e nove anos, solteira, arquiteta, e paramos por aí, não avancei em mais nada. Sem casamentos, sem filhos, sem viagens maravilhosas, sem vida...

Chegando ao escritório reiniciei a análise de um projeto de reforma de uma casa cujo dono era amigo do meu chefe, ou seja, mais cuidado ainda. Ganhava bem, algumas comissões que engordavam minha poupança, mas não conseguia fazer aquilo que almejava na faculdade.

Minha vida financeira era estável, bom salário, nenhum gasto que fizesse mexer no dinheiro do banco. Morando com minha mãe no apartamento dela, os gastos eram somente os frugais, as roupas eram comuns, sem muitos adereços, não tinha o hábito de sair, salvo um cinema com minha prima ou minha mãe, e uma pizza um fim de semana ou outro. Fazia questão de não engordar porque minha mãe era bem gordinha e via o drama que isso gerou sua vida inteira.

Tinha poucos amigos no trabalho, todos pareciam confortáveis em suas vidas em família, e eu só, morando com minha mãe. Sentindo-me deslocada nesse meio, tinha amizade somente com uma colega que, divorciada, morava com a filha e se preocupava tão somente em arrumar outro companheiro. Nossa amizade resumia-se em uma tentar convencer a outra que estava certa. Ela tentava me convencer a aproveitar a vida, gastar meu dinheiro, viajar e conhecer pessoas, e eu por minha vez, tentava convence-la a ficar mais em casa e guardar mais dinheiro, pois tinha uma filha ainda pequena, que precisava da mãe.

Conversava-mos no café sobre a saída que ela teve na noite anterior. Mais uma balada em que conheceu mais um homem, mais uma noite cheia de aventuras. E eu, fiquei assistindo mais um filme repetido na televisão. Iniciamos uma leve discussão, de minha parte eu falava sobre a loucura de sair cada dia com uma pessoa diferente, enquanto ela perguntava se eu ia passar o resto da vida guardando dinheiro e assistindo filmes velhos na televisão, me disse que eu era motivo de risos no escritório com essa minha vida inerte.

No fundo senti uma enorme inveja daquela vida cheia de acontecimentos. Ela tinha uma vida difícil, criava a filha sozinha desde que o marido a deixou, o salário não era tão bom quanto o meu, com inúmeros problemas que movimentavam sua vida, causando inclusive alguns problemas de saúde, e eu morrendo de inveja, com essa minha vida tão “boa”, “estável”, “comportada”.

Conclui, só nessa hora, que algo estava errado. Era preciso fazer alguma coisa para deixar de ser a chata do escritório, motivo de risos em todos os escalões. Quanta vergonha e tristeza senti, que vontade de sumir de mim mesma. Comecei a lembrar das noites iguais, anos e anos vendo TV, contando calorias, dormindo, jogando baralho com minha mãe, escutando as lamúrias de minha prima sobre seu casamento e sua vida vazia. Sempre espectadora, assistindo minha vida passar sem sentir.

Pedi licença ao chefe, que espantado me deu o dia para resolver meu suposto problema particular. No banheiro antes de ir, pensei: Por onde começar essa mudança?

Não tinha nenhuma amiga para confiar, não queria falar com nenhum conhecido, na verdade não queria falar com ninguém. Esses anos todos me transformaram em um estereótipo de mulher bem sucedida, mas esse sucesso não estava dentro de mim.

Na verdade não queria uma transformação muito extrema, afinal minha auto estima estava abalada, mas já havia existido, e esse bem querer de mim mesma fazia com que eu almejasse somente agitar minha vida de forma a torná-la mais produtiva.

Busquei aquela jovem destemida e independente, vaidosa, e principalmente vibrante. Passo a passo reformei meu íntimo de modo que às transformações passassem despercebidas de início e, quando notadas não causassem nada além de uma grata surpresa a todos os conhecidos, colegas, amigos e familiares.

Mais bonita e cuidada, passei a desfrutar de alguns prazeres antes deixados de lado, e até mesmo saí algumas vezes com aquela colega.
Não foi tão simples. Essa mudança, que foi fruto de um mergulho dentro de mim mesma, causou cicatrizes profundas dentro de mim, mas que me fazem lembrar sempre de não me deixar incorrer novamente nessa armadilha da acomodação.

Um comentário:

  1. Incrível!
    Você escreve muito bem e consegue nos envolver de uma forma, que realmente nos faz viajar junto com o texto.
    Siga em frente, além de ser uma realização para você, é algo que também faz bem aos outros. Obrigado por compartilhar com a gente.

    Continue, estou adorando.

    Beijos.

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