Depois de muitos anos na casa adaptada que adorávamos, tivemos que nos mudar para outro lugar que não agradou a ninguém. Tudo o que tínhamos no outro endereço perdemos com a mudança, e quando digo tudo, é tudo mesmo...
No novo endereço perdemos a amplidão e as salas e passamos a contar com o seguinte: um pequeno pátio para estacionamento dos carros (pequeno mesmo); um salão grande no térreo, onde ficava a parte administrativa, dividida por divisórias; no andar superior outro grande salão onde ficava a área técnica e uma pequena sala (também dividida por divisórias) onde ficava o chefe, ou seja, estávamos todos juntos em uma pequena casa que tinha o pé direito1 baixo, que nos dava a impressão de estarmos em um porão. Para quem leu o livro “ O colecionador” de John Fowles fica a dica de imaginar onde ficou a estudante Miranda, quando foi seqüestrada por Freddie. Não, não estou exagerando, depois de anos em uma grande casa arejada, em um bairro nobre da cidade, a sensação de ir para um bairro sombrio, em uma casa de dimensões diminutas era exatamente essa.
Neste nosso novo local, fomos nos adaptando e também passando por novas situações, aqueles que quase não tínhamos contato passaram a conviver diretamente conosco durante o dia todo. Como estávamos em uma sala única, dividida por divisórias, ouvíamos tudo e todos, perdemos completamente a nossa privacidade, e passamos a conhecer a intimidade de todos: se brigou com o marido/mulher; se o filho estava doente; se devia no banco; se tinha dinheiro sobrando para aplicar; se trocou de carro ou apartamento; se era católico, evangélico ou espírita; e por aí vai. A intimidade era total, querendo ou não.
Passamos então a conhecer melhor e conviver com o "Seu" Ronaldo, que era o motorista e fazia todo o serviço de rua: lavar e abastecer os carros no posto; serviço de banco; orçamentos e compras.
Que figura peculiar era o Seu Ronaldo, tanto que merece destaque neste capítulo. Bem mais velho que a maioria, Seu Ronaldo era separado e com filhos adultos, por isso morava só, sua vida era a repartição e nós éramos os seus amigos. Gostava de ajudar a todos e tinha um bom coração (até demais), e queria arrumar uma nova companheira, mas que fosse bem novinha, assim passamos a brincar muito com ele em função disso. Mas ele era muito voluntarioso e teimoso, o que as vezes irritava algumas pessoas. Tinha um senso de justiça exacerbado e todos os dias comprava seu jornal (aquele bem popular), e de posse das notícias do dia, se punha a discuti-las com qualquer um que se aproximasse. Ninguém lhe dava bola e ficava ele comentando indignado a página policial, com aqueles fatos escabrosos de mortes, assassinatos, assaltos, seqüestros e estupros. Até que passou pela agência um estagiário, que vou chamar de Thales, que adorou seu jeito, e diariamente comentava as notícias com ele. Vamos lembrar que estávamos naquele salão grande, todos juntos, escutando os comentários sobre aquelas notícias diariamente. Tales adorava e suscitava Seu Ronaldo a falar cada vez mais e de forma mais inflamada sobre todos aqueles crimes. Isso ocorria nas primeiras horas da manhã, enquanto Seu Ronaldo aguardava o serviço de rua, ou seja, logo cedo tínhamos um programa novo, um jornal ao vivo, em que Thales era o âncora e Seu Ronaldo o repórter policial, nos brindando todas as manhãs com as notícias mais escabrosas do dia anterior. Ele se inflamava a ponto de avermelhar o rosto enquanto Thales impassível, tal qual um âncora, fazia seu comentário e pedia a análise dos fatos a Seu Ronaldo, que dava sua opinião sempre polêmica, gerando reação na "platéia", atenta mesmo sem querer.
Muitas foram as vezes em que eu e Nelson Augusto nos aproximávamos, e tal qual espectadores interessados, assistíamos a este jornal ao vivo, sob a batuta do estagiário Thales, que ao final das notícias se despedia com um sonoro bom dia. Seu Ronaldo então se retirava e saia da repartição para mais um dia de trabalho na rua e nós ficávamos rindo da forma como ele interagia com a notícia, dizendo como o governo e a polícia deveriam agir, sempre de forma não muito ortodoxa.
Lembrando de fatos assim que percebo como fomos unidos naquela fase tão sombria, em que fomos colocados em uma casa tão inóspita, mas que conseguimos transformar em um lugar habitável e divertido. Quem fez parte daquela história certamente sepultou os maus momentos, e deixa aflorar somente aquilo que nos acrescentou positivamente; a união, o riso, a alegria, a tolerância, o bom viver.
Não faço mais parte daquela repartição, nem tampouco Seu Ronaldo, não sei como vive hoje aquele homem, espero que tenha conservado seu lado bom, e nos momentos difíceis saiba e se lembre o quanto foi importante naquele lugar, o quanto deve estar fazendo falta e o quanto sempre foi querido, a despeito de sua personalidade tão original.
1Pé-direito é uma expressão utilizada em arquitetura, engenharia e em construções em geral, que indica a distância do pavimento ao teto.